segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

De João Cabral de Melo Neto para mim

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos. [...]

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papeis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome. [...]

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

A menina sem nome

Estranho como às vezes não lembramos o nome das pessoas que mais nos marcam. Estava ali aquela menina, em pé, um pouco curvada, com enormes olhos castanhos que vagavam o mundo sem tirar o foco do chão. Tudo o que ela podia ver era como a desventura lhe havia cortado a vida. Não disse nada, não sorriu. Suspeitava que a menina sem nome também não tivesse sentimentos, ou volição, ou qualquer coisa que a tirasse daquele [des]mundo. Descobri que a menina tinha dezessete anos. Vi-me nela. Os anos corriam sobre sua face, seu corpo. Era um retrato pintado a lágrimas, voltei para casa dando os retoques finais.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Tem sempre alguma coisa no jeito como a rua fica quando chove que me proporciona uma felicidade leve e calma. A neblina que não deixa o sol aparecer e os dedos dos pés que ficam gelados, o ar mais pesado, as janelas embaçadas. Sinto a água tocar meu corpo e passear por ele, transformando a pele de minhas mãos e pés numa pele enrugada, como a pele de uma velha senhora. Não que eu não me sinta assim. Às vezes parece que o mundo inteiro já passou por mim enquanto lavo, esfrego e deixo secar ao sol minhas palavras já desbotadas...